A BÍBLIA DO MARKETING

Flordelis acordou... Na cama completamente bagunçada, mais duas pessoas. Estava nua, estavam todos nús. Ela se vira para procurar o celular em meio aos lençóis revirados e húmidos. Embaixo de um travesseiro o aparelho apareceu, eram três horas da manhã em ponto. Seu corpo estava levemente dolorido, suado e exausto. Tocava uma música que preenchia a suíte, "Barões da Pisadinha'', pensa. Ela se vira novamente, olha para o teto deitada e se vê, vê os três.


Se levanta então com certa dificuldade, suas nádegas ardem, sentia também alguns arranhões nas costas. Caminha até a mesa três metros adiante, apanha uma das carteiras de cigarro que estavam entre uma garrafa e o cinzeiro abarrotado de bitucas, pega o isqueiro, acende e expira a fumaça enquanto admira a paisagem pela janela ampla: “que cidade maravilhosa”, pensa consigo, pega a garrafa e derrama a última dose do whisky no copo, era uma garrafa de Jameson Irish Whiskey, seu novo favorito. Lhe veio à memória a ocasião em que havia tomado este whiskey pela primeira vez, mas hesita por um instante. Pergunta a si mesma repentinamente se aquele seria mesmo seu copo. Consulta sua memória, havia estado atenta sobre quem segurava qual copo durante todo o tempo, localiza os outros dois, se tranquiliza, pega três pedras de gelo no frigobar, joga-as no copo e saboreia o tom amadeirado da bebida.


O gosto remeteu-lhe novamente à primeira vez em que havia provado aquele destilado. Um executivo paulista apresentou-lhe o livro Marketing and Management de Philip Kotler na ocasião, dizendo que aquela era a bíblia do marketing, que se ela se apoderasse do conhecimento contido naquele livro, seria imparável. Flordelis riu baixinho, tragou o cigarro novamente e pensou: “A bíblia do marketing é a própria bíblia! O ser humano conseguiu criar a bíblia do marketing na própria Bíblia sagrada!” sussurra para si, toma outro gole e segue: “Eu posso fazer o que eu quiser! Eu sou uma deusa na terra! Eu sou a própria Judas Iscariote! Eu lhes entrego Jesus como Judas o entregou aos carrascos, com um beijo! Um esquema de pirâmide espiritual! O cume da pirâmide descende dele! Deus me colocou aqui! Deus colocou Judas no caminho de Jesus!”, ri baixinho e filosofa sem pronunciar as palavras: “Judas e Jesus sabiam que esse Deus que a gente vende é o deus da luxúria, da dominação, da ganância… Que o deus verdadeiro nem sequer sabe da nossa existência, é o universo!”

Flordelis pausa. Recorre mais uma vez à memória para recordar quais substâncias havia ingerido nas últimas horas, além do whisky e cigarro, e ri novamente, baixinho. Dá um trago e continua, em silêncio: “Eu sou a santa que jamais será beatificada, eu sou a santa da ira! A ira jamais foi pecado! Se tornou apenas para que o servo jamais se levantasse contra o seu senhor, para dar-lhe a outra face! E jamais revidar-lhe o açoite!” Após uma pausa dramática repentina, daquelas que utiliza nos altares diante dos fiéis, sussurra mais uma vez para si mesma: “Eu revido o açoite!” 


Terminou o cigarro, terminou o whiskey. Foi ao banheiro tomar um banho, escovar os dentes e colocar a lace no lugar. Vestiu-se rapidamente, pegou o celular na cama: 4:56 da manhã, três ligações não atendidas, fez uma transação bancária, mandou uma mensagem, pegou a chave do carro, o cartão de crédito no prato sobre a mesa e se dirigiu a saída, hesitou mais uma vez. Virou-se, apontou o celular para a cama e tirou três fotos. Escolheu uma e enviou. Guardou o celular na bolsa, calçou os sapatos, botou os óculos escuros e com a chave do Audi entre os dedos, saiu da suíte.


por Luigi Anghinoni


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